Era onde havia a estação de metro mais bonita e tecnológica do mundo que ficava no bairro mais bonito da cidade. E lá era onde morava a pessoa mais bonita de todas... Lá tudo era mais bonito. Até a sujeira do chão era mais bonita. Os pássaros assoviavam clássicos de Vivaldi, o lixo tinha aroma refrescante. O céu era mais azul, o ar era mais puro. O crack não viciava tanto, além de ter cheiro de flores. Os mendigos de lá eram adoráveis! Sábios filósofos. Eram belos, simpáticos e cheirosos. Andavam por aí sorrindo para todos, tocando violino, distribuindo flores e dizendo “Bom dia madame!”. Todas eram madames por lá e isso era óbvio.
Os donos dos bares eram galantes cavalheiros, muito perfumados e elegantes. Nos restaurantes os garçons loiros e belíssimos serviam às pessoas cantando, faziam perguntas simpáticas e voltam para a cozinha saltitando e ainda entoando clássicos formidavelmente bem interpretados, assim como as garçonetes, apesar de apenas elas terem feições tão meigas acompanhadas por gestos tão suaves e delicados.
Nas alamedas os cães de rua, todos de raças como Buldogue Inglês, Pug, Bullmastiff, Rottweiler , Border Collie e Golden Retriever. Eles andavam agradando as pessoas fazendo truques e ajudavam os cegos a atravessarem as ruas, ajudavam as donas de casa a levarem as compras para o lar e eram recompensados com banquetes divinos das melhores carnes imagináveis pelos donos de restaurantes.
Nos supermercados as atendentes eram extremamente talentosas e eficientes, nunca havia filas. As nuvens eram de algodão doce, chovia caramelo de vez em quando, mas ninguém se melecava. Era um caramelo muito comportado que desviava das pessoas, caia no chão e, cuidadosamente, se dirigia para a canaleta de coleta de caramelo. Assim também fazia a água, o leite e as muitas diversidades de maravilhas provenientes do céu como licores, mel, sucos mais variados e iogurtes coloridos. Caíam do céu, vez por outra, bombons como “Sonho de Valsa” e “Ferrero Rocher”, entre outros.
As paredes de muitas casas eram de chocolates. As mais antigas poderiam ser adornadas pela única praga que por lá existia, eram baratas com cheiro de Glade. Mas se isso por acaso ocorresse, era só abrir a porta que no mesmo instante entraria uma ratazana psicodélica rosa com manchas laranja fosforescente. Uma música toca quando esses animais fabulosos estão por perto. São quase psicotrópicos audiovisuais ambulantes. Eis que o ratão entra e diz à barata cheirosa: “Posso deglutir-te, madame?” Ao que a barata responde: “Mas é claro!”. Eis que a rata Zana deita no chão, abre a boca perto do chão para que a barata azul e perfumada possa alcançar, ela entra, o rato fecha a boca dirige-se para a porta, faz uma ligeira reverência para a dona de casa e diz: “Até logo, madame!”. Obviamente o som de sua voz é telepático porque não é educado falar de boca cheia, por mais que seja cheia de um maravilhoso inseto cheiroso. Sai e fecha a porta suavemente atrás de si, termina de deglutir o inseto e é acometido por sensações fantásticas. Sente gosto de pêssego na orelha esquerda, sua calda é preenchida por aromas doces e inebriantes, sente surgir-lhe ao dorso uma orelha e por ela começa a escutar Jimi Hendrix ao mesmo tempo em que sente gostos de uvas do monte no lóbulo. Em instantes o chão se transforma em um ladrilhado de brigadeiros cheirosos. Sem perder tempo ela lambe toda a calçada até não sobrar nada de brigadeiro, e sim nuvens de algodão doce, por onde ela cai e cai... O céu azul por cima e por baixo... As nuvens tentam amortecer sua queda vertiginosa, mas tudo o que ela quer é cair no mar que é feito de groselha e ser resgatada por uma embarcação feita de biscoitos recheados. E seria deixada em uma ilha onde biscoitos pensariam que deus caiu dos céus. Os biscoitos a tratariam como rei, lhe servindo tudo o que desejasse, lhe construiriam templos de tortas multe-frutíferas, palácios de rocambole, teria baratas psicodélicas todos os dias... Ou a matariam impiedosamente por acreditarem que o criador é, por ser o criador, o motor de todo sofrimento das suas tristes e dolorosas vidas de biscoitos...
Quase todas as árvores dão dinheiro em vez de folhas, e o dinheiro é muito limpo e cheiroso, ideal para atividades higiênicas ao banheiro. Existem árvores que fornecem dinheiro umedecido, ideal para limpar superfícies sujas, coisa que não existia por lá, já que a poeira era muito bem comportada, ela se desgrudava das pessoas e das coisas e se encaminhava para o lixo calmamente. De noite quase sempre chovia chocolate, leite ou mel e de dia o clima era perfeito para pescar Tilápia nos canos da cozinha. Às vezes era tudo isso junto.
Na primavera as luzes eram mais luminosas, era como se todas as coisas e pessoas tivessem luz própria. As roupas eram coloridas e contrastantes, não era incômodo de se ver, como o verde limão ou azul piscina podem se tornar. Os pássaros voavam sem parar e assoviavam a prima Vera do Vivaldi. A alegria emana de todas as coisas. O som do vento nas copas das árvores. O verde das folhas por onde permeia a luz do sol, a sombra que este fascinante conjunto projeta na grama... Os esquilos voadores se divertem o tempo todo, os idosos jogam xadrez calmamente sob a sombra de um carvalho gigante. Os cisnes se deslocam suavemente flutuando sobre as águas mais puras e cristalinas existentes. Um casal de enamorados conversavam tranquilos sobre o como a vida é maravilhosa e seus planos para o futuro enquanto deslizavam sobre as águas do lago vistas de dentro de um pedalinho de cristal, por onde era possível ver através do piso transparente, as maravilhas aquáticas como peixes, algas aquarélicas, pepinos do mar de rio, águas vivas psicodélicas e elétricas que tornavam o lago de noite um fascinante show de luzes biológicas, cavalos riosos (uma variação formidável e raríssima de cavalos marinhos de água doce, só que bem maiores e mais coloridos.) saltitantes, esponjas do rio, lulas molúsculos (espécie raríssima também), entre muitos outros. Só no breve momento em que o silêncio se formou entre eles, no qual olharam um momento para baixo, foi possível ver uma lula interagindo com um golfinho, dois Guppy jogando sinuca, um Plati praticando remo submarino, três Molinésias patricinhas saindo de um shopping, lotadas de compras, quatro Borboletas Listradas discutindo sobre relações públicas em quanto tomavam café no lado de fora de uma taberna, alguns cavalos marinhos vinham a galope para saltarem para fora da água e sentir como o ar é gelado e seco... O som das crianças brincando no parquinho os fez voltarem para a superfície e olharem-se nos olhos.
As crianças nos campos vastos e garridos corriam distraídas. Umas conversavam sobre a cotação atual das jujubas, outras sobre a alta do brigadeiro ou sobre a previsão de queda dos preços das balas de goma e no que seria mais vantajoso investir suas mesadas. Outras se encantavam com borboletas gigantes que tinham perto de trinta polegadas de envergadura, outras observavam as inúmeras espécies de flores que por lá viviam. Observavam os crisântemos, as angélicas e o jasmim do imperador. Mas apenas observavam este último, de longe, pois era do imperador. Já o jasmim amarelo elas podiam cheirar e até tocar, o imperador não gostava de amarelo, elas pensavam... O jasmim estrela também podia, já que este também era amarelo... Havia ainda Artemísia, madressilva, ou Madre Silva? Begônias, zamioculcas “Que nome estranho!” Mas tinham mais estranhos, como a clerodendro que mais parecia um ébrio falando bobagem... Havia ainda rainhas da noite que desabrochavam de dia, afinal eram rainhas, desabrochariam até de baixo da água, não é mesmo? Algumas outras, ainda, observavam que já era possível ver saturno. Algum fenômeno não explicado até o momento fazia com que saturno aparecesse no céu maior do que a lua, sendo possível ver seus anéis com nitidez espetacular. Os satélites naturais de saturno giravam lenta e imperceptivelmente ao seu redor, enquanto uma brisa suave passava por entre as amoreiras depois de terem passado suavemente pelas parreiras e de ter carregado os esporos de muitos dos cogumelos coloridos que havia por toda a parte. O mais fascinante deles possuía bioluminescência em forma de espiral hipnótica, uma defesa natural contra diversos povos e animais que os usavam por seus poderes alucinatórios potentes. Não é mais preciso fazer um chá com ele, basta apenas olhá-lo por alguns instantes que se tem efeitos da mesma ordem que se teria caso se fizesse um chá bem forte com eles.
Por fim começava a escurecer, os pais das crianças que por lá brincavam já estavam levando seus filhos de volta para casa, estes, ansiosos demais para esperar, não viam a hora de chegarem aos seus lares, tomar um bom banho (“Pega essa redundância!”) e estudarem bastante, não porque a escola exigia, já que a escola não era obrigatória nem muito menos recomendada por lá, mas porque todos sabem (até as crianças) que “como a principal característica do ser humano é a inteligência (já que este não tem garras afiadas, não voa e muito menos corre) devemos ser os melhores humanos possível, ainda que não saibamos o motivo da nossa existência nem o que isso significa, e isso só será possível através de muito exercício mental, ou seja, muito estudo... não é isso, mamãe?” “É isso sim, Lucas” a mãe do garoto respondeu: “Agora vamos dormir que está tarde já, e temos muito ainda por fazer...”.
De dentro do quarto era possível ver a tênue luz que o Arco Íris da Vila, como era chamado, dissipava até umas duas horas depois do sol se por. Era um arco íris bem mais iluminado e possuía não sete, mas vinte e nove cores que se alternavam suavemente e por vezes se misturavam formando imagens abstratas, mas bem nítidas. Mais de noite, quando o arco se esvaía, no céu, quando não tinha saturno ou a lua para interferirem com a claridade, via-se a aurora celeste, outro fenômeno ainda não explicado, mas acredita-se ter o mesmo princípio o aumento de saturno, pois ambos eram possíveis de serem apreciados apenas naquela localidade.
Ao amanhecer, o som do mar e das gaivotas enchia o ar de alegria e de entusiasmo. O velho Bartolomeu cuidava do farol, onde vivia a mais de quarenta anos sozinho, depois de um amor mal sucedido. As embarcações luxuosas se preparavam para cruzar o oceano. Pela brisa a maresia era carregada enquanto todos do cruzeiro se preparavam para a viagem começar... De cima do farol, Bartolomeu podia observar tudo o que se passava até alguns quilômetros em torno do seu raio. Ele via as baleias coloridas saltitando da água enquanto mudavam de cor. Deveria ter algo no ar que fazia com que quase todos os animais, com o tempo, adquirissem a bioluminescência. Talvez tenha sido a usina...
Chegara a pouco o momento de o grande e esplendoroso navio Verde de Vontade partir. O som do mar batendo no casco era único. As pessoas que ficaram no porto acenavam com seus lenços Verde de Catarro para as do navio, que acenavam de volta e um suave burburinho de despedidas era formado. Muitos se emocionavam, mas todos da costa esperavam até o navio desaparecer abaixo da linha do horizonte para se irem. Por fim a grande buzina do navio toca assustando alguns peixes da água, fazendo com que estes saltem bruxuleantemente para todos os lados, alguns, inclusive, chegam a cair em terra firme, mas logo surgem pernas e começam a passear pela cidade assim como as outras criaturas todas. O navio se vai e o som que ele faz de vez em quando se reduz a nada, mas a visão de um pontinho ao longe perdura por um pouco mais de tempo, até ser um nada que some no horizonte.
O som do mar acedendo às pedras faz com que Bartolomeu se sinta mais jovem. Ele está se vendo como quando tinha treze anos, uma criança com vontade de correr por todos os lugares, conhecer todas as coisas, provar todas as comidas do mundo, conhecer todas as pessoas, ler todos os livros bons,... Experimentar o experimental... Experimentar o experimental... Experimentar o que for experimentável. Para que especular sobre o que não é experimentável? Bartolomeu é agora uma criança. Porém com menos suscetibilidade à escolhas coraçoginosas que lhe possam trazer sofrimento duradouro. Ele quer fazer tudo o que deixou de fazer durante toda a sua vida. Ele vai fazer tudo antes que acabe seu tempo. A vida é como um jogo de xadrez, ou você perde porque é incompetente, ou você perde porque o tempo acabou. Bartolomeu não era incompetente, comprovara isso quando era jovem. As coisas que aconteceram o levaram a parar, mas não mataram sua competência. Estava convencido disso.
Bartolomeu olhou mais uma vez para o mar, viu que o sol refletia nele e formava uma nesga dourada sobre o mar. Era a sua vez de estar vivo. Estufou o peito, apagou a luz do farol e saiu depois de cinco anos. A última vez que sairá foi para tratar um fungo que nascera em suas costas. Abriu a porta que dava para as escadas, sentiu-a ranger com a mão e com os ouvidos, era possível sentir o cheiro de madeira úmida entrando pela porta. Olhou as escadas de pedra, desceu pisando apenas nos degraus divisíveis por três, como a muito não sonhava em fazer. Estava decidido, agora era o momento. Iria agora mesmo ao banco pegar toda a fortuna que conseguira juntar quando era jovem, antes de ser traído por seu próprio coração... Ia e ia já. Viajaria pelo mundo, conheceria pessoas, ouviria e contaria histórias, provaria comidas típicas, faria todas as coisas que ainda lhe permitia o tempo. Sentiu finalmente a areia ainda quente sob seus pés, entrando entre seus dedos. O cheiro do mar perto da areia era diferente do cheiro que tinha lá de cima do farol, ele observara... Havia muita luz entrando por seus olhos semicerrados, para ele só significava uma coisa: A vida nova que estava por surgir. Aos poucos seus olhos se acostumaram com a luz e suas pernas se acostumaram com seu peso, aos poucos já ia podendo correr. Ele tinha que atravessar boa parte da praia ainda... O sol ia subindo no céu aos poucos enquanto saturno se punha sobre o lado oposto do mar. Estava ficando escaldante já. Estava na hora de aparecer uma sombra... Foi exatamente o que aconteceu logo após esse pensamento surgir em sua mente. Bartolomeu pensou: “Sô foda, digdim, digdim! Quer ver que a nuvem tem formato de batata doce?” Nisso ele olhou para cima e não pôde acreditar no que viu. Uma pena ver pela última vez e ainda assim não acreditar... O que Bartolomeu vira fora uma baleia que se materializara sobre ele e o esmagara poucos décimos de segundo depois que olhara para cima.